26/10/2013 20h00
Lusco Fusco - O P?o Nosso de Cada Dia
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Falemos hoje de um espécime humano praticamente extinto. O objeto de análise fiada da semana merece logo de cara uma exaltação: assim que apontava em qualquer logradouro desse Brasil largo causava alvoroço nas damas de casa, que postavam-se rapidamente dois passos além do portão à sua espera. Era um modelo de celebridade sem flashes, um ídolo escondido sob o manto da labuta.</p>
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Esse ser era venerado não pela beleza, a fortuna, o círculo de influências ou os talentos artísticos. O sujeito, e falo no masculino porque desconheço uma mulher que tenha se atrevido a exercer tal função, não causava espécie pelo canto de voz aveludada ou o olhar penetrante, muito menos pelo brilho alvo de seus dentes.</p>
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Nosso exemplar é um ícone de uma era que não mais existe. Esperado todas as manhãs e tardes, ele oferecia ao ambiente familiar a alegria e o alívio, o conforto e a segurança de uma vida sossegada, mansa como o rebojo do menor dos córregos. A adoração dispensada ao mesmo se estendia por toda a casa, merecendo loas também dos pais e filhos.</p>
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Valendo-se exclusivamente da força das pernas, nosso personagem transportava artigos de tradição milenar e intimamente ligados à evolução cavalar pela qual passou a raça humana. Falo aqui do padeiro e de seus clássicos balaios de fibra trançada, acobertados geralmente por sacos de farinha.</p>
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Recordo-me dessa figura como se fosse ontem. Vale aqui uma distinção: falo do padeiro que cruzava a cidade a vender pães e biscoitos e não propriamente do fabricante de massas, que comumente permanece enfornado nas partes baixas das padarias. Não que o segundo não seja de louvável valia, pelo contrário, porém, o entregador de guloseimas é quem revolve memórias.</p>
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Primeiro, falemos da infraestrutura dedicada ao trabalho. Havia dois tipos de padeiros: os que suportavam o balaio nas costas e venciam ladeiras e cachorros a pé e aqueles que se acomodavam sobre o selim das clássicas Monark Barra Circular, artefatos de resistência carbônica e que ofereciam a genuína garupa capaz de receber o cesto sem delongas. Ressalto aqui que basicamente preferiam magrelas de cor verde, por motivo ainda indecifrado.</p>
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Outro recurso de apoio largamente aplicado por esses indivíduos eram os sacos plásticos de arroz que faziam o papel de porta-moedas e cédulas. Padeiro que se prezava não apeava de um e era quase um sacrilégio remexer os bolsos em busca do troco. Fazer a dama de casa esperar era uma indelicadeza que se ampliava com a denotação da falta de preparo para o comércio.</p>
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Os padeiros-entregadores eram geralmente moços, grande parte no primeiro emprego e aprendendo o valor do trabalho e do dinheiro ganho à custa do esforço individual. Faziam parte da esfera dos vendedores de chupe-chupe, engraxates e capinadores de quintais, para ficarmos em alguns exemplos.</p>
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Todas essas atividades, hoje frequentando o mesmo bojo do desaparecimento, eram uma forma de a sociedade transmitir valores aos jovens. O que importava não era a remuneração em si ou o feitio do trabalho executado, mas a noção de responsabilidade repassada. E, pelo que me lembro, nenhum dos que conheci executando tais ofícios deixaram de frequentar a escola.</p>
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Voltemos ao padeiro e seu balaio. Sem querer soar exagerado, caso a rota do salvador tivesse início nas proximidades de sua casa, a felicidade chegava à forma de um pão quentinho, daqueles que derretem a manteiga da roça, com sal, e a absorvem até empapuçar o miolo branco. Você sabe do que falo e entenderei perfeitamente se arremessar esse jornal na sarjeta e correr atrás de um desses nesse exato momento. Fique à vontade.</p>
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Além dos pães, padeiro de destaque trazia ainda biscoito de polvilho, daqueles grandes e de interior aerado. Esses biscoitos eram verdadeiros hipnotizadores de crianças. Bastava largar-me na sala munido com um, devidamente acompanhado por um copo duplo de café com leite, para minha mãe não ter com que se preocupar. Rendo homenagem ainda às broas e bombinhas de cebola.</p>
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Mas nada disso seria completo se não houvesse o grito típico, arrancado com força dos pulmões e trovejado por uma voz estridente e pouco melódica, porém eficiente para o propósito: "Paaaaadeeeeiro", gritavam ao longe esses homens de rara nobreza, anunciando a chegada de algo valioso ao feitio dos corneteiros reais. Cada padeiro manejava seu grito e dele sugava sua identidade. Conhecíamos os padeiros pelos diferentes timbres e formas com que alardeavam sua passagem.</p>
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E o que nos resta hoje caros amigos? Restam-nos padarias super-produzidas, iluminadas em demasia, coalhadas de milhões de produtos que tapam a vivacidade de um bom e belo pão com manteiga. O que sobrou foi um atendimento desumanizado, a pressa, o infortúnio de não saber quanto custa um pãozinho francês. A padaria deixou de conversar conosco a partir da extinção do padeiro de rua.</p>
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Vivo mais triste sem um padeiro a trazer a vida até a porta de casa. Torço para que alguns de vocês ainda desfrutem dessa benção.</p>
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<em>Contato: thobiasalmeida@gmail.com</em></p>