06/11/2013 15h00
Lusco Fusco - Depois do fim
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- Vovô, o que você está fazendo?</p>
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- Estou lendo essa revista do meu tempo, em papel ainda. Ela falava sobre futebol. Trazia tudo sobre os times, jogadores, campeonatos, estatísticas, curiosidades...</p>
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- É aquele negócio da bola? Aquela gente que ficava correndo de um lado pro outro sobre um quadrado de grama?</p>
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- Mais ou menos. A bola realmente era a prima donna, iluminada e perfeita. Sem ela não tinha futebol. Mas esse esporte envolvia mais coisas. Havia quem chorava e brigava pelo time do coração, como se fosse um ente da família. Era difícil encontrar quem era indiferente ao futebol. Houve uma época em que todos os países do mundo tinham pelo menos um time. Isso não existe mais, assim como o sentimento.</p>
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- Sentimento existe sim. O que não existe mais é o futebol. Eu tenho sentimento.</p>
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- Tudo bem.</p>
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- Mas, se era assim tão grande, por que acabou?</p>
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- Começaram a ganhar muito dinheiro com o negócio. Aí o sentimento morreu.</p>
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- Mas o sentimento não morreu.</p>
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- O sentimento ligado ao futebol virou fumaça. Era o que sustentava o esporte.</p>
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- Mas não dava dinheiro? Como algo que dá dinheiro acaba?</p>
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- Sem sentimento, a fidelidade ao futebol foi esganada. Alguns senhores engravatados resolveram sozinhos que o futebol deveria virar um negócio de bilhões de dólares. Dólar era como o yuan hoje. Eles não perceberam que o futebol era sustentado pela fé e não pelo caixa.</p>
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- Ainda não entendi.</p>
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- Eles começaram a valorizar mais o retorno financeiro do que o torcedor. Tudo começou quando proibiram o povão de entrar nos estádios.</p>
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- Mas podiam fazer isso?</p>
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- Não proibiram de proibir. Impediram disfarçadamente. O golpe inicial foi acabar com a geral, onde as pessoas assistiam aos jogos de pé por um preço muito baixo. Era na geral que o futebol ganhava cor, o espaço mais divertido do estádio. Depois, subiram os preços de todos os ingressos. Pobre passou a não poder frequentar estádio. Tiveram a brilhante ideia de que o futebol era coisa para consumidor e não para torcedor.</p>
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- E aí?</p>
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- Bem, o consumidor muda de hábitos. Ele pode ser levado a apreciar algo novo que supostamente ofereça mais vantagens, embalado pela propaganda. Foi o que aconteceu quando inventaram o G-Game. Mas, se tivessem se preocupado em formar torcedores, a história seria outra. Um torcedor é fiel ao time, ao esporte, sofre e ri como respira. Era natural nascer e morrer gostando do futebol, amando um time. Você não vê isso no G-Game, as pessoas pulam de galho em galho atrás das equipes que pagam mais.</p>
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- Mas é estranho alguém gostar de algo que não traz dinheiro e ainda por cima causa infelicidade. Você mesmo não diz que ficava muito triste quando seu time perdia?</p>
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- Pois é. Esse pensamento típico da sua geração acabou também com o casamento. Quando nasci, amar não era igual a ganhar. A gente amava sabendo que sofreria. Isso rendeu ótimos livros. Você já leu um livro?</p>
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- Não, mas deixa pra lá. Vou ali ver qual equipe de G-Game está oferecendo mais para torcer. Hoje é a final, os prêmios são maiores, você sabe.</p>
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- Você nunca irá entender o futebol.</p>
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- Eu já entendi tudo. O futebol era um desperdício de tempo. A vida deve ser direcionada para algo que nos ofereça ganhos. Se posso sempre ganhar, pra quê vou me sujeitar a perder?</p>
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- Para viver, de verdade.</p>
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<em>Contato: thobiasalmeida@gmail.com</em></p>