Bom Dia - O Diário do Médio Piracicaba

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11/06/2013 18h00

Lusco-Fusco - O Vizinho do Andar de Cima

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<p> O senhor sai em disparada rumo ao quarto. Nervoso, m&atilde;os tr&ecirc;mulas, veias altas marcando o pesco&ccedil;o e a fronte, busca de maneira afobada a arma que o acompanha desde a d&eacute;cada de 1960, &eacute;poca em que era militar da ativa. O rev&oacute;lver calibre 38 estava adormecido h&aacute; d&eacute;cadas, por&eacute;m, o descontrole aflorado em um estalar de dedos o faria despertar para ser o autor involunt&aacute;rio da desgra&ccedil;a.</p> <p> Sem levar em contas os apelos dram&aacute;ticos da companheira, que chorava e o puxava como se a porta fosse o caminho para a senten&ccedil;a de morte, aquele homem rumou com passos socados em dire&ccedil;&atilde;o ao elevador. N&atilde;o tirou o dedo do bot&atilde;o de chamada em nenhum momento, at&eacute; que escutou a doce voz mec&acirc;nica do aparelho disparar: &ldquo;sobe&rdquo;. Ele entrou e subiu.</p> <p> No percurso at&eacute; o s&eacute;timo andar, que n&atilde;o consumiu mais que 20 segundos, repetia alucinadamente a frase: &ldquo;N&atilde;o aguento mais esse barulho. N&atilde;o aguento mais esse barulho. N&atilde;o aguento mais esse barulho&rdquo;. Olhava para a arma em punho, conferia as balas, girava o tambor. O ritual foi refeito tr&ecirc;s vezes. A porta do elevador abriu-se e novamente a aveludada voz eletr&ocirc;nica se fez presente: &ldquo;s&eacute;timo andar&rdquo;.</p> <p> Invadiu de chofre o corredor e viu a luz se acender automaticamente. O apartamento 702 estava &agrave; esquerda. N&atilde;o pensou uma &uacute;nica vez em recuar. A suavidade das alpargatas e do pijama gasto n&atilde;o compunha bem com o rosto em f&uacute;ria de um senhor de 62 anos. Por detr&aacute;s da porta daquele apartamento, onde vivia um casal e uma crian&ccedil;a de pouco mais de um ano, algum programa humor&iacute;stico fazia risadas ecoarem. Havia uma alegria de fim de domingo no ambiente, aquela que vem &agrave; tona por volta das 17h, por mais que a maioria insista que este &eacute; um momento de depress&atilde;o. Para aquele casal era sim um momento de conforto e relaxamento.</p> <p> Com o cano do rev&oacute;lver bateu &agrave; porta. Foram tr&ecirc;s movimentos curtos, secos e decididos. Evitou a campainha. Escutou um inocente &ldquo;j&aacute; vai&rdquo; dito por uma voz masculina. Pouco tempo depois percebeu que algu&eacute;m conferiu o olho m&aacute;gico. Escutou o trinco ser destravado. Vivenciou uma eternidade at&eacute; que a porta fosse aberta por completo. &Agrave; sua frente estava um adulto de 40 anos. Alguns metros atr&aacute;s, caminhando na dire&ccedil;&atilde;o dos dois, uma mulher de 37. A crian&ccedil;a estava acomodada um carrinho ao lado do sof&aacute;.</p> <p> Sem dizer uma &uacute;nica palavra e mirando os olhos incr&eacute;dulos do vizinho de cima ao avistar o rev&oacute;lver, o senhor apertou o gatilho contra o peito da v&iacute;tima. O estampido varou o corredor. Algumas gotas de sangue macularam o pijama. Assim que o primeiro corpo caiu, atirou contra a mulher. A bala atravessou a garganta. O assassino sequer deu aten&ccedil;&atilde;o ao choro da crian&ccedil;a. Virou as costas e seguiu rumo ao elevador olhando para o nada.</p> <p> Aparentando estar em outro plano, entrou no transporte interno e sequer escutou a voz de recep&ccedil;&atilde;o. Assim que apertou o 6 e as portas se fecharam, apoiou a arma contra o pr&oacute;prio peito e atirou sem d&uacute;vidas. Seu sangue aguou generosamente o carpete cinza do espa&ccedil;o.</p> <p> A hist&oacute;ria acima &eacute; real. Salvo alguns detalhes frutos da imagina&ccedil;&atilde;o do escriba, tudo aconteceu em S&atilde;o Paulo, no final de maio de 2013. Segundo as primeiras informa&ccedil;&otilde;es reveladas pela pol&iacute;cia, e tamb&eacute;m de acordo com o depoimento da esposa do atirador, a trag&eacute;dia ocorreu devido ao barulho do aparelho de TV das v&iacute;timas, vizinhos do andar de cima.</p> <p> N&atilde;o h&aacute; muito o qu&ecirc; se comentar com rela&ccedil;&atilde;o a essa atrocidade. Provavelmente o autor sofria algum transtorno, cuja gota d&rsquo;&aacute;gua para a explos&atilde;o foi a trivialidade do volume de uma televis&atilde;o. No entanto, o epis&oacute;dio nos deixa li&ccedil;&otilde;es.</p> <p> Em &aacute;reas urbanas, pequenas, m&eacute;dias e grandes, vivemos muito pr&oacute;ximos uns aos outros. Espanto-me com o fato de passar semanas sem dar um bom dia sequer aos meus vizinhos. N&atilde;o por brigas ou desaven&ccedil;as, mas porque compartilhamos apenas o mesmo espa&ccedil;o e n&atilde;o as mesmas viv&ecirc;ncias.</p> <p> No entanto, parece-me que quanto mais pertos, mais procuramos nos afastar em busca da t&atilde;o alardeada privacidade. Refugamos o contato para preservar uma falsa dose de exist&ecirc;ncia paralela, escondida e ego&iacute;sta. O que me soa engra&ccedil;ado &eacute; que procuramos isso na lida di&aacute;ria com nossos vizinhos, mas escancaramos detalhes muito mais &iacute;ntimos em redes sociais.</p> <p> Quem sabe, e aqui fa&ccedil;o um exerc&iacute;cio de pura especula&ccedil;&atilde;o, caso os personagens dessa triste hist&oacute;ria conversassem mais, fossem mais pr&oacute;ximos, o desfecho poderia ser outro. &Oacute;bvio, existem pessoas irritantes, e elas podem compor nossa vizinhan&ccedil;a. Mas n&atilde;o custa nada tentar viver com um pouco mais de gentileza e sociabilidade. Certamente isso s&oacute; trar&aacute; ganhos.</p> <p> Tenham uma &oacute;tima semana!</p>

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